sexta-feira, 16 de março de 2012

Real Celeiro Público

Edifício do Real Celeiro Público de Alenquer. Foto de E. Portugal, 1941

O Real Celeiro Público de Alenquer foi erigido com a natureza de montepio agrário na sequência da publicação da carta régia de 26 de Julho de 1811, que, com o fim de atenuar os efeitos devastadores das invasões francesas, preceituava, entre muitas outras medidas, a distribuição de sementes aos lavradores no sentido de se poder restabelecer a produção cerealífera.
A sua existência legal virá a concretizar-se através da portaria de 25 de Janeiro de 1812:

Sendo da maior necessidade acorrer a grandes faltas que experimentam a Província da Estremadura, sobretudo nas terras invadidas pelo inimigo, onde se não pôde, a tempo, semear no ano passado, não havendo as sementes precisas, nem mesmo permitido o tempo outras providências mais prontas que as que se destinam para aproveitar neste presente ano a sementeira das melhores terras temporãs, devendo continuar-se esta providência para outras terras mais serôdias, e de sementeiras de milho nas terras invadidas, segundo se forem proporcionando os meios e a estação o permitir; Manda o Príncipe Regente Nosso Senhor que nas vilas de Alenquer e Santarém e nos Celeiro da Cardiga se formem três depósitos dos trigos e cevadas da terra que se puderem achar capazes de semente, cujos depósitos serão confiados à guarda e conservação dos administradores dos tabacos das referidas vilas, aos quais se fará entrega dos ditos géneros, à proporção que forem remetidos por Francisco Xavier de Montes, que se acha encarregado das referidas compras.

1.       Terão estes depósitos a natureza dos Montes Pios de Évora, Miranda e outras terras do Reino, unicamente destinados a darem por empréstimo trigos, cevadas e milhos àqueles lavradores que tiverem gados e boas terras, capazes de darem boa produção.

2.       Os corregedores das comarcas de Santarém e Alenquer, nos depósitos dos seus respectivos distritos, e o juiz de fora da Golegã, no depósito da Cardiga, convocando um eclesiástico de conhecida probidade e inteligência e dois lavradores escolhidos pela câmara, juntamente com o administrador dos tabacos, que o deverá ser do depósito, farão as sessões necessárias, prescindindo de toda a delonga que retarde a execução desta importante medida, para concederem ou negarem as sementes àqueles lavradores que, em sua consciência, julgarem mais capazes por terem boas terras, gados próprios, em estado de aproveitarem o benefício que o mesmo senhor lhes procura, ficando todos obrigados e responsáveis, um por todos e todos por um, pela execução e cumprimento das reais ordens.

3.       Todos os lavradores serão obrigados na próxima colheita a satisfazerem o pão emprestado, dando em cada maio a gratificação de três alqueires a benefício da conservação do estabelecimento.

4.       Serão obrigados a conduzir o pão ao depósito onde o receberam, não podendo alegar pretexto ou escusa para deter ou demorar a sua entrega, e o administrador fica autorizado para requerer sumariamente, perante os magistrados encarregados dos depósitos, a sua efectiva cobrança, tomando-se-lhes em conta na residência, além de responsabilidade que têm pela segurança e conservação dos ditos depósitos com os mais encarregados da distribuição.

5.       Quando por má colheita o lavrador não puder pagar as sementes sem dano, prorrogar-se-á a conservação dela, pagando, porem, infalivelmente, o prémio.

6.       Feito o empréstimo aos lavradores, o corregedor o fará publicar por editais, declarando os nomes dos lavradores, as sementes que receberam, para assim melhor constar e, no ano seguinte, poder beneficiar aos outros que não puderam entrar em relação, dando conta na Secretaria de Estado dos Negócios do Reino logo que as referidas sementes estiverem semeadas, de que particularmente fica encarregado.

7.       O administrador do depósito terá um livro no qual escreverá o determinado nas conferências, a distribuição das sementes e todos os mais apontamentos que se julgarem necessários conservar em memória, assinando os conferentes presentes, finda a sessão.

8.       A entrega se fará por termo assinado perante o escrivão da câmara, com as solenidades da lei.

9.       Tendo porem o mesmo senhor consideração às despesas necessárias […] para conservação e guarda dos géneros depositados, concede, finda que seja a colheita e recolhido o pão no celeiro, que o administrador receba um alqueire por moio, para deles satisfazer as despesas de que está encarregado, dando-se a cada um dos outros encarregados uma quarta por moio, pelo extraordinário incómodo e como gratificação deste serviço, ficando um alqueire para aumento e conservação do celeiro, como se pratica em todos os estabelecimentos desta natureza.

10.    Para acautelar as quebras que possa haver, se farão as duas medições, a primeira na recepção e a segunda no acto do empréstimo, sendo presentes todos os encarregados, ou ao menos dois, que assinarão o balanço com o aumento ou diminuição que tiver naquele dia […].

11.    Terá o corregedor e mais vogais cuidado de conservar algumas sementes de trigos três meses na colheita próxima, tendo em vista a necessidade que muitas vezes experimenta a comarca pelas inundações do Tejo.

12.   Nas outras comarcas onde não há depósitos procederão os corregedores pela maneira acima estabelecida com a concorrência dos dois lavradores e eclesiástico atendendo às pretensões daqueles que estiverem nas circunstâncias aqui declaradas, regulando-se para a distribuição, segurança e cobrança das sementes emprestadas na próxima colheita pelas providências dadas na presente Portaria e expedindo para a sua entrega os competentes precatórios aos corregedores das comarcas de Santarém, Alenquer e juiz de fora da Golegã, presidentes dos depósitos de Santarém, Alenquer e Cardiga onde se lhes fornecerão as mesmas sementes até às quantias seguintes, a saber: para a comarca de Leiria vinte moios de trigo e cevada; para a de Ourém dez moios de trigo e dez de cevada; para a de Tomar dez de trigo e dez de cevada; para a de Alcobaça dez moios de trigo e dez de cevada; para a de Ribatejo, cinco moios de trigo e cinco de cevada; para a de Torres Vedras dez de trigo e dez de cevada; para Castelo Branco dez de trigo e dez de cevada, sendo as ditas porções as que provavelmente se poderão ainda lançar à terra, suposto o adiantamento da estação, devendo observar as providências dadas na presente Portaria, para a sua conservação e arrecadação na próxima colheita, participando o presidente do depósito, fornecer a comarca aos outros depósitos para a sua devida inteligência.
13.   E para que Sua Alteza Real possa dar iguais providências para auxiliar a sementeira de milhos na estação própria, darão conta os corregedores das referidas comarcas da porção deste género, que será necessária para cada uma delas.
14.   E achando-se o Desembargador Filipe Ferreira de Araújo e Castro encarregado de fazer efectiva a remessa dos géneros que Francisco Xavier de Montes aprontar, é o mesmo senhor servido autorizá-lo, para que logo que aditar remessa se completar passe a visitar os depósitos e a verificar a execução da presente portaria. Palácio do Governo, aos 25 de Janeiro de 1812.
Logo no mês seguinte a junta se acha constituída e a funcionar, iniciando, no princípio de Março, a distribuição de sementes.

A acta da reunião de 14 de Agosto de 1812 revela-nos, no entanto, a inexistência, ainda, de instalação própria:
“Não havendo celeiro para se recolherem as sementes emprestadas aos lavradores que instam e requerem a esta junta continuamente para que lhas recebam pelo prejuízo que do contrário se lhes segue, tomou esta junta o acordo visto não achar celeiro algum pronto de pedir aos religiosos de S. Francisco desta vila a prestação de duas casas que dentro do mesmo convento têm cómodas para a recepção das ditas sementes e porque nas mesmas há a falta de três portas, determinamos que se passem a fazer as mesmas dando-se conta ao inspector dos celeiros comuns, o desembargador Filipe Ferreira de Araújo e Castro desta mesma deliberação”.
A deliberação será aprovada. 

Nas décadas de 1820 e 1830, sofrerá também o Real Celeiro os efeitos das lutas liberais, traduzidos por abusos e desvios. Numa carta do seu administrador para o sub-prefeito da Estremadura, datada de 21 de Outubro de 1835, se dá conta que este estabelecimento “tem andado em desleixo, causado ainda por aqueles que figuraram na administração em o tempo do governo usurpador”. No mesmo documento se pede que “se expedisse ao Juiz de Direito deste Julgado o este mandar proceder na cobrança activa, pelo meio executivo, contra os devedores, seus fiadores, ou mesmo contra qualquer dos pretéritos membros da junta que se julgar deram causa a descaminhos, que se presumem”.

Com o triunfo do Liberalismo, a administração dos celeiros foi integralmente transferida para as câmaras municipais.

A situação não terá melhorado e em meados do século XIX reconheciam-se graves defeitos na organização e administração dos celeiros existentes no país, nomeadamente a cobrança difícil e dispendiosa das dívidas já muito acumuladas.

Com o novo Regulamento dos Celeiros Comuns, de 20 de Julho de 1854, procurar-se-á alterar a situação. A junta, anualmente constituída, passará a ser composta pelo presidente da Câmara, pelo pároco, pelo juiz de paz da jurisdição, e por dois cidadãos “probos e abonados”. A orgânica de cada celeiro contemplará ainda os lugares de escrivão, procurador, medidor e tesoureiro.

O Real Celeiro estará activo mais de sessenta anos, entre 1812 e 1873, mas, e citando Guilherme Henriques, “morreu, como todas as boas instituições, aniquilado pelos abusos”.
A Câmara Municipal é hoje detentora do arquivo do antigo Celeiro, que, não sendo muito volumoso, nos permite, no entanto, reconstituir quase toda a história desta importante instituição local do século XIX.
É essencialmente composto por livros de conferências e distribuições de sementes (1812-1832), livros de actas da Junta Administrativa (1855-1865), livros e cadernos de termos de fianças (1812-1861), livros de caixa (1855-1874), livros de relações de devedores (1848-1852), requerimentos (1835-1869) e outros documentos avulsos.

Edifício do Real Celeiro Público de Alenquer. Foto de E. Portugal, 1941