terça-feira, 27 de março de 2012

A Casa e as Festas do Espírito Santo de Alenquer nas Memórias Paroquiais (1758)


Há nesta freguesia, dentro na vila, dois hospitais, a saber: o da Misericórdia, de que se tratará quando se falar nes­ta Casa, e o do Espírito Santo, que hoje está reduzido só a uma alberga­ria. Foi este fundado, como consta por documentos que há no cartório da dita Casa do Espírito Santo, pela senhora Santa Isabel, rainha que foi deste rei­no, em o ano de mil trezentos e vinte, estando a dita Santa então nesta vila com seu marido El-Rei Dom Dinis, precedendo revelação divina e aparecendo milagrosamente riscados, ou abertos só á superfície, os alicerces da igreja que depois foi do dito hospital, a qual logo a dita Santa Rainha, pelo mesmo risco, mandou edificar à sua custa dando-lhe a invoca­ção do dito Espírito Santo e mandando que todos os anos se celebrasse, com grande solenidade, a sua festa, e comprou gados que fossem rendendo para o dito hospital, cuja administração entregou logo aos moradores e homens bons da dita vila, que entre si instituíram confraria e compromisso e dotaram a dita Casa do Espírito Santo de algumas rendas, ficando esta e a dita confraria governadas por um juiz e dois mordomos, que se elegiam anu­almente até o ano de mil e quinhentos e oito, em que o Rei D. Manuel lhe deu regimento por sua mão assinado, em que mandou que se governasse por um provedor e um escrivão perpétuos, que um despachasse e o outro processasse judicial e extraju­dicialmente nos negócios e demandas da dita Casa e hospital. Porém, como os confrades não elegessem o dito provedor, passados alguns anos, nomeou a rainha neste cargo a Francisco de Macedo, natural da dita vila, filho mais velho de Rui Dias de Góis e de Inês de Oliveira de Macedo e meio-irmão do nobre cronista Damião de Góis, e, por morte deste, a seu filho Sebastião de Macedo, fidalgo da casa do Cardeal-Infante, depois Rei Dom Henrique, e seu camareiro e guarda-roupa, depois também vedor da sua casa, em cuja descendência sempre até ago­ra se conservou a dita provedoria por eleição dos confrades, confirmada pelas rainhas, ora no ramo dos viscondes de Vila Nova de Cerveira, ora no dos antepassados do sobredito Gonçalo Tomás Peixoto da Silva Macedo Carvalho, que ambos descendem, por filhas, dos ditos primeiros provedores. Consta o edifício da dita Casa do Espírito Santo da igreja, que é de uma só nave com as paredes vestidas de azulejo de figuras moderno e o teto pintado da perspetiva e painéis; e tem três altares em capelas à face da mesma igreja, que são: o altar-mor, da in­vocação do Espírito Santo, e os dois colaterais, que é um da Senhora do Socorro, imagem muito antiga e de grande devoção, e outro da dita Santa. Consta também de umas casas nobres contíguas a mesma igreja, em que há muitos aposentos e duas grandes varandas, uma em cima, sustentada em colunas de pedra, e outra em baixo, com arcos de pedraria e pilares de ferro. Em a lógia de uma das salas se dá albergaria aos pobres peregrinos, e em outra, cha­mada a Casa do Bodo, há dois paióis, em que se põem, separados, a carne e o pão, que se benze na véspera do Espírito Santo para se mandar aos con­frades e pessoas nobres da terra; e na mesma Casa se dá, na primeira oitava da dita festa, de jantar a to­dos os pobres, homens e mulheres, que concorrem a esta função, que muitas vezes chegam a perto de trezentos. São servidos à mesa pelo provedor e pe­las mais pessoas de maior respeito que aí se acham. Terá a dita Casa do Espírito Santo de renda, com algumas esmolas que se vão pedir ao Alentejo e em frutos e em dinheiro, duzentos e oitenta mil réis, os quais se gastam no conserto das casas e igreja e culto divino, e em várias obras pias para que está destinada a dita renda, principalmente o salário de dois capelães, que na dita igreja dizem missa quo­tidiana pelos confrades e benfeitores da dita Casa.
Por costume antiquíssimo e acórdãos da dita Confraria, se fazia na dita Casa, em todos os domin­gos desde o de Páscoa até o do Espírito Santo, uma função chamada Império, que saía da dita igreja, em que ia diante a bandeira da Confraria, acompa­nhada com trombetas, com duas pelas bailando aos ombros de homens, por serem meninas de pouca idade. Logo uma dança das antigas do reino, de­pois muitas pessoas nobres, a que se seguiam duas moças donzelas toucadas e bem vestidas em corpo, a que chamam damas, e, entre elas, um menino nobre, que leva nas mãos uma espada larga sem copos com cruz e punhos dourados e bainha de veludo, chamada estoque, e dizem que fora do dito Rei Dom Dinis, servindo assim o dito menino de pajem do imperador, que é um homem nobre, que vai logo detrás, e ultimamente um capelão, com um prato grande de prata dourado, e nele uma coroa imperial da mesma matéria, com uma pombinha, figura do Espírito Santo; e se encaminhava toda esta comitiva até à igreja do Convento de São Fran­cisco, onde bailavam as ditas damas, antigamente ao som da gaita e tamboril, e modernamente com um homem que juntamente tocava viola, e depois, pondo-se o dito imperador de joelhos nas escadas do altar-mor, era coroado com a dita coroa por um padre do dito convento, revestido de capa de asper­ges, e voltava toda a dita comitiva pela praça, e ou­tras ruas da vila, até à dita Igreja do Espírito Santo, onde um capelão revestido, depois de dar a beijar ao imperador uma cruz com o Santo Lenho, lha tira da cabeça e, nas suas mãos, a beijam todos os cir­cunstantes. E depois saíam todos para a varanda de baixo, onde o imperador se sentava debaixo de um rico dossel de brocado, e as ditas damas e menino do estoque aos seus pés, e logo quatro pessoas, das mais autorizadas que ali se achavam, lhe iam ofere­cer frutos e vinho, com as mesmas reverências que se fazem a majestade, e repetia então a mesma dan­ça o homem da viola, com as ditas damas, e de novo tornavam os mesmos homens nobres, ou fidalgos, a ir oferecer doce e águas ao dito imperador, com as mesmas cerimónias, e nelas dava fim esta fun­ção, que ainda hoje se celebra em alguns dos ditos domingos, no que toca a coroação do imperador e acompanhamento; porém, há já alguns anos que se lhe não fazem os referidos oferecimentos, nem há a dança de foliões sobredita, nem as damas bailam, por não haver homens, ainda que humildes, que queiram entrar nestes bailes em público, antes o têm por afronta.
No sábado, véspera do dia do Espírito Santo, de tarde, há também outra função, que por tradição já escrita em livros antigos se diz que principiara por um voto, que em tempo do Rei Dom Afonso II fizera esta vila à Senhora da Assumpção, que se venera na Igreja Paroquial de Triana da mesma vila, se esta, por interceção da mesma Senhora, se livrasse da pes­te que então houve neste reino. Principalmente se prende um rolo de cera bento, a que chamam can­deia, em o altar-mor da Igreja de São Francisco e daí se vai continuando a estender, preso nas paredes, pelas ruas da dita vila, até o altar-mor da dita Igreja da Senhora de Triana. Logo se ajuntam na dita Igreja de São Francisco todo o clero secular e regular, no­breza, justiças e senado da Câmara desta vila, com as suas insígnias, e também o dito imperador, com dois homens dos principais delas para fazerem a fi­gura de reis, e, ajoelhando todos no altar-mor, são todos três coroados por um padre revestido com capa de asperges, o imperador com a dita coroa im­perial e, aos seus lados, os dois reis com coroas de prata abertas, todas com a pombinha figura do Es­pírito Santo, e depois sai todo este ajuntamento em procissão, precedendo a bandeira da dita Confraria acompanhada de pelas e trombetas, e no fim vai o dito imperador, entre os dois reis, levando diante as ditas damas e pajem, com o estoque. E discorrendo pelas ruas da vila, rodeadas do dito rolo ou candeia, entram na sobredita Igreja de Triana onde fazem oração. E, ultimamente, se recolhem na do Espírito Santo, passando logo para a dita Casa dos Paióis, na qual, sentados, o dito imperador e reis, em cadeiras, debaixo de dossel, assistem ao benzer solene do pão e carne do bodo, e voltando para a igreja, ajoelha­dos no altar, lhes tira um capelão as coroas, que to­dos os circunstantes beijam com devoção.

Pedro da Silveira
Prior da Freguesia de São Pedro da Vila de Alenquer
15 de Abril de 1758

(A.N.T.T., Memórias Paroquiais, vol. 2, n.º46-a, pp. 367-377)